As primeiras semanas da administração Trump nos EUA são um espetáculo bizarro. Já falamos aqui neste espaço da caça às bruxas promovida contra diversidade em todas as agências governamentais, inclusive a Nasa –uma das joias da coroa, admirada no mundo inteiro.
Sempre foi assim: não importa se você é democrata ou republicano, ninguém nunca é contra a Nasa, possivelmente o maior símbolo histórico da superioridade tecnológica americana. Nem bem passaram dois meses de Trump de volta à Casa Branca e já temos de começar a nos perguntar o que vai sobrar da agência espacial. É um desmanche em curso.
A força de trabalho foi submetida a um programa de demissão voluntária que já teve a adesão de pelo menos 750 funcionários. Um dos que estão partindo é Jim Free, funcionário de carreira que estava na linha de sucessão para ser administrador interino após a troca de governo, mas foi preterido pela Casa Branca em favor de Janet Petro, que, ato contínuo, assinou o comunicado interno antidiversidade para implementar as ordens de Trump.
A esperança de uma gestão técnica da Nasa encolhe a cada dia. Nas últimas semanas, vimos uma tabelinha nas redes sociais entre Trump e Elon Musk, dono da SpaceX e virtual presidente americano sem ter sido eleito, em que ambos fingiam que os astronautas Suni Williams e Butch Wilmore foram abandonados à própria sorte no espaço pela administração Biden (não foram) e que Musk deveria preparar um resgate dos astronautas o mais rápido possível (quando a nave que vai trazê-los de volta já está há meses na Estação Espacial Internacional, e só não voltou ainda, em fevereiro, porque a própria SpaceX, empresa de Musk, estava atrasada na entrega da próxima cápsula a subir com astronautas para rendê-los em órbita).
O constrangimento fez Musk bater boca e trocar xingamentos com astronautas nas redes sociais, enquanto eles tentavam explicar ao público que ninguém havia sido abandonado e que o atraso nunca teve motivação política. Mas que importa a verdade hoje em dia, não é?
Ao mesmo tempo, um consenso vai se formando do que Trump, guiado por Musk, pode fazer com a agência espacial –em essência, jogar fora décadas de trabalho e parcerias internacionais, entrando numa aposta de “tudo ou nada” para a conquista de Marte. É mera coincidência que Musk desenvolve na SpaceX seu veículo Starship justamente para missões marcianas, não?
Há fortes rumores de que a gestão tentará cancelar o programa Artemis, ou no mínimo reformá-lo, eliminando as cápsulas Orion (feitas em parceria com europeus) e o foguete SLS. Para fechar a conta, na quinta-feira (20), Musk foi às redes sociais falar que a Nasa deveria derrubar a Estação Espacial Internacional (ISS) “o mais rápido possível”, sugerindo um horizonte de dois anos para isso. Tudo para concentrar esforços e recursos na ida a Marte (vulgo, na empresa dele).
Além de fingir que é novidade o movimento de encerrar o programa da estação (a SpaceX já foi contratada no ano passado para desenvolver a nave que vai derrubar o complexo), ele quer deixar na mão japoneses, canadenses, europeus (que pretendiam ir com a ISS até 2030) e até mesmo russos (que tinham se comprometido até 2028), eliminando precocemente o projeto.
Todos esses movimentos tendem a fazer com que a Nasa dependa mais da SpaceX e podem reduzir a agência a uma burocracia a serviço da empresa, reduzindo drasticamente seu portfólio de atividades. Resta saber se as instituições americanas (sobretudo o Congresso, que costuma ter bons olhos para a Nasa) vão deixar que esse desmanche chegue a termo.
Esta coluna é publicada às segundas-feiras na versão impressa, em Ciência.
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