Uma dança a dois com o divã – 10/02/2025 – Veny Santos


O tombo da nuca na rígida superfície do divã foi tal qual desconfortável como a queda do mais resistente alicerce do ser: sua convicção. Estranheza, por assim dizer, foi a primeira impressão e, talvez, o ponto de partida para uma caminhada sem promessa de chegada ou volta. Foi-se, como verbo que se repete no tempo passado, aquele corpo doído de alma, buscar na escuta de si mesmo algum sopro que lhe aliviasse as costas da garganta, o cachaço do povo.

Parecia-lhe caricato o divã. Partiu daí. Ao iniciar a dissertação de suas frestas, orando sobre mal-estares inevitáveis por pelo menos uma hora, buscou erguer velhas defesas. Um roteiro, um caminho, qualquer previsão que fizesse do léxico frase feita a ocultar o sujeito. Assim era menos insuportável do que o silêncio sobre o estranho sofá benfeitor das neuroses. Não foi assim, como verbo que se repete, conjugada a sessão.

Das voltas dadas pelos lábios finos da mentira, percebeu como única saída as vias da bocarra. Passou, então, de palavra em palavra, de símbolo em símbolo, a expor no palco de sua consciência a lucidez do insensato incômodo. “É que o divã me faz sentir que sou um personagem de drama qualquer, clichê, sem mistérios.”

A valsa solitária que muitas vezes é a sessão ecoou em seu salão tal frase.

Não havia par para dançar, então, sozinha, foi a dança ritmando o que ele, o incomodado no divã, acomodaria em suas próprias dores —a cadência dos desejos nunca tirados para dançar e sempre à espreita do convite. Silêncio quebrado. “E por que você se sente como personagem?”. Desejou dançar, mas hesitou quando a vontade se materializou na palavra do terapeuta. Dois passos para cá, dois para lá, nenhum para trás. Parado sobre o móvel desconfortante.

Os processos de elaboração e associação de pensamentos são complexos por natureza. Requerem tudo, absolutamente tudo o que não se quer dar a si mesmo: desencanto, desimportância, abandono de prazeres supostos e acolhimento de percepções que fazem da realidade, de fato, concreta. Deveras dura.

Um curativo, talvez seja este termo um tanto quanto reducionista —mas, por ora, veste bem o sentido—, capaz de aliviar aquele aperto que só a gente que pulsa sabe. Nem melhor, nem pior, apenas um eu que deseja sem sofrer, porque busca aprender sobre o querer mais do que sobre o ter. Verbos outros valsando, agora, a dois.

A queda do ser até o divã, caracterizando-se de si mesmo para performar a tragicômica miséria dos recalques revisitados, é um dos tantos cenários para longe das agruras da vida —ou melhor, para além. Há o estranhamento que anuncia o quanto se sabe pouco daquele indivíduo sofrido de vontades que, uma vez refletido no espelho, atenderá ao mundo quando chamado for por eu.

Este chamado também fica por conta da investigação a respeito do que dói e por que dói. Palavra, escuta e práticas que levam a gente que pulsa a buscar ajuda nos estudos da mente são, por essência, tentativas de sofrer menos, de viver o máximo possível —ainda que nunca o bastante— da parte saudável na qual se encontram os quereres que não escravizam; os desejos que não aprisionam o espírito numa valsa a um.

Seria caricato se não fosse apenas um divã.


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