Primeira autobiografia publicada por um papa, Esperança, livro de Francisco que chega às livrarias brasileiras nesta terça (4), não foi planejado para ser lançado agora. Escrita a partir de depoimentos dados pelo sumo pontífice ao editor Carlo Musso de 2019 a 2024–ele assina como coautor–, a ideia era que a obra fosse publicada somente após a morte do religioso.
Musso esclarece, em nota ao fim do livro, que “em um primeiro momento sua autobiobrafia deveria ser publicada como legado após sua morte”. E o que fez Francisco mudar de ideia teria sido o Jubileu de 2025, ano especial para os católicos que costuma ocorrer, tradicionalmente, a cada 25 anos. Segundo o editor, tanto o evento como “as exigências do tempo” convenceram o papa “a difundir agora esta preciosa herança”.
Mas o que conta Esperança e por que a obra é tão importante? Além do ineditismo de ser uma autobiografia de um papa, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil concordam que o maior valor do livro está no fato de consolidar de forma simples e acessível as principais mensagens expressadas pelo religioso em documentos institucionais da Igreja, como encíclicas, exortações e outros textos.
Consultor do Vaticano, o padre jesuíta norte-americano James Martin diz à reportagem que o livro mostra “Francisco em sua forma mais pessoal”. “É um lembrete de que temos um papa aberto, acolhedor e transparente. Foi assim que o encontrei em meus poucos encontros pessoais com ele. E acho suas histórias e sua escrita muito convidativas. Nada pomposo, nem excessivamente formal e, certamente, nada que exija um diploma avançado para ser compreendido. Isso é algo positivo para o público leitor. É um livro encantador”, elogia.
“Esse livro é um pouco para dizer: vamos recolher aqui os pontos principais do pontificado e vamos colocar a própria vida do papa Francisco como símbolo de esperança, símbolo de alguém que teve uma vida normal até certo ponto e que conseguiu transmitir sua mensagem de esperança, conseguir ser uma mensagem de esperança”, avalia à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e diretor do Lay Centre, também em Roma.
“Sem dúvida o papa pensa sua autobiografia como um testemunho importante, que corrobora suas ideias e mostra que elas não nasceram de uma reflexão abstrata, mas de uma vida como a de todos os demais cristãos. Um traço característico de Bergoglio é sua humildade”, diz à reportagem o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, ex-coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e editor do jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo.
Para o historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, a ideia da autobiografia é a oportunidade que Francisco tem para deixar para a história “sua visão sobre si mesmo”, como fonte primária. “É a tentativa de ocupar um lugar de fala, deste momento e para a posteridade”, analisa ele, em conversa com a reportagem.
Ele vê o livro como um “reforço sobre as causas defendidas por Francisco ao longo do pontificado”. Ao contrário de celebridades que usam o recurso da autobiografia para lançar holofotes sobre suas personalidades, “ele tenta dar à Igreja uma relevância em tempos tão difíceis como os que estamos vivendo”, argumenta o professor.
No livro, portanto, ao contar sua história desde a infância em Buenos Aires até o conclave que fez dele o primeiro papa latino-americano – bem como momentos que viveu no comando da Igreja -, ele promove reflexões sobre temas que lhe são caros, como a importância da preservação do meio ambiente, o acolhimento das minorias, a inserção dos imigrantes e a simplificação da hierarquia da Igreja, com redução de privilégios dos que gravitam na sua esfera de poder.
Para quem acompanha a história da Igreja e conhece a trajetória de Francisco, não há muita coisa nova. Contudo, é saboroso conferir a narração dessas histórias pela voz do próprio papa.
O ecletismo do argentino também está evidente na obra. Ao longo de sua narração, ele cita autores que vão do seu conterrâneo escritor Jorge Luis Borges (1899-1986) ao sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), passando pelo russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), pelo uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) e pelo alemão Bertold Brecht (1898-1956), entre tantos outros. Em diversas passagens demonstra seu gosto pela música, mencionando explicitamente o Samba da Bênção, de Baden Powel (1937-2000) e Vinícius de Moraes (1913-1980), La Tradotta, de Riccardo Bizzarro, e outras oito canções. Filmes também são lembrados, dentre eles La Strada, de Federico Fellini (1920-1993).
A seguir, cinco histórias que estão em Esperança.
A notória sensibilidade de Francisco junto aos marginalizados tem raízes em sua biografia. “Quando alguém me acusa de ser um papa ‘villero’, apenas rogo para que seja sempre digno disso”, escreve.
Na história urbanística de Buenos Aires, as villas são assentamentos precários, de ocupação informal com submoradias, semelhantes às favelas brasileiras. Ao longo de sua trajetória religiosa, como padre e, depois, bispo, o então Jorge Bergoglio sempre foi próximo a essas comunidades.
A postura acolhedora daqueles considerados excluídos vem de antes. Bergoglio foi criado no bairro de Flores, no centro de Buenos. Ele conta que, na sua infância, a região era “um caleidoscópio de etnias, religiões e profissões”, um “microcosmo complexo, multiétnico, multirreligioso e multicultural”.
Convivia com amigos muçulmanos e sabia da existência de um periódico em árabe em Buenos Aires. No bairro, coexistiam imigrantes de diversas nacionalidades.
Pelo menos quatro de suas vizinhas eram prostitutas. Uma delas, conhecida como Porota, procurou-o quando ele já era bispo auxiliar de Buenos Aires. “‘Ei, você não se lembra? Eu soube que virou bispo, quero te ver!’. Continuava um rio transbordante. Venha, respondi, e a recebi no bispado. Ainda vivia em Flores, era por volta de 1993. ‘Sabe’, ela me confidenciou, ‘fui prostituta por tudo que é canto, até nos Estados Unidos. Ganhei bem, depois me apaixonei por um homem mais velho, que acabou se tornando meu amante. Quando ele morreu, mudei de vida. Agora estou aposentada. Vou dar banho nos velhinhos e nas velhinhas das casas de repouso que não têm ninguém que cuide deles. Não frequento muito a missa e com meu corpo fiz de tudo, mas agora quero cuidar dos corpos que não interessam a ninguém'”, relata.
Francisco conta ainda que, anos mais tarde, quando ele já era cardeal, Porota a procurou novamente, pedindo que ele fosse rezar uma missa para ela e suas amigas. “Digo que sim, claro, perguntando-me quem seriam aquelas amigas”, recorda-se.
Eram todas ex-prostitutas e atuais prostitutas. “E queriam se confessar. Foi uma celebração lindíssima. Porota estava contente, quase comovida”, conta.
O então cardeal Bergoglio seria próximo dela até o fim da vida. Foi ele quem foi dar a unção dos enfermos a ela, quando estava hospitalizada, poucos dias antes de morrer. “E muito bem eu lhe quis. Até hoje não esqueço de rezar por ela no dia da sua morte”, afirma.
Quando cursava química na Escuela Técnica Especializada en Industrias Químicas Nº 12, nos anos 1950, um de seus 13 colegas acabou sendo preso. Filho de um policial, ele pegou a arma do pai e matou um jovem do bairro. Porque “a mente do ser humano às vezes é um mistério insondável”, reflete o papa.
“Ele foi detido na seção penal de um manicômio, e eu quis visitá-lo. Foi a minha primeira experiência em uma prisão”, relembra. “Pude cumprimentar meu amigo apenas de uma janelinha minúscula, do tamanho de um selo, cortada em quatro por uma grade e emoldurada por uma pesada porta de ferro. Foi terrível, fiquei profundamente abalado.”
O amigo acabaria se matando tempos depois, aos 24 anos.
Ataque cardíaco em jogo do San Lorenzo
A paixão pelo futebol, em especial pelo seu time San Lorenzo, é uma característica visível no papa Francisco. No livro ele conta que gostava de jogar bola mas era um completo perna de pau – na expressão argentina, um “pata dura”. “Algo como ter dois pés esquerdos. Mas jogava”, comenta.
Mas o futebol não lhe deu só alegrias. Em 24 de setembro de 1961, seu pai morreu. Tinha 53 anos e não sobreviveu a um infarto sofrido no estádio, quando assistia a uma partida do seu time, o San Lorenzo.
Francisco conta que o ataque cardíaco ocorreu quando o pai estava “exultando com um gol” do time. “Eu estava com os jesuítas em San Miguel: fui avisado e voltei às pressas”, relata. Foram 20 dias no hospital.
Apesar de seguir acompanhando futebol, Francisco não assiste à televisão desde 1990, por conta de uma promessa que fez a Nossa Senhora. “Mas me informo, naturalmente. Sobre assuntos diversos e também sobre o San Lorenzo. Um dos guardas suíços me deixa na mesa, todas as semanas, os resultados e a classificação”, explica ele.
Coincidência divina, no ano em que Francisco se tornou papa, em 2013, o seu time se sagrou campeão argentino. Em seguida, “pela primeira vez em sua história”, o San Lorenzo levantou a taça da Copa Libertadores, o mais importante torneiro latino-americano.
Ele também sente remorso
Atire a primeira pedra quem nunca sentiu uma parcela de culpa no dia a dia. Pois até o papa cultiva essas sensações. No livro ele narra algumas situações de muita humanidade.
Por exemplo quando, 20 anos depois da última vez que haviam se visto, uma antiga empregada doméstica da família foi procurá-lo no Colégio de San Miguel, instituição jesuíta que ele então dirigia. “Mas eu estava muito atarefado naquele dia e, com uma ligeireza pela qual não me perdoei, mandei dizer que não estava”, lembra. “Quando me dei conta do que havia feito, chorei.”
Situação parecida ele vivenciou com padre Enrico Pozzoli. Em duas ocasiões. O religioso era amigo da família e foi o primeiro ali naquela comunidade a ter uma máquina fotográfica.
Segundo Francisco, esses “dois episódios dolorosos” ele gostaria de “poder viver outra vez, para agir de modo diferente”. “Um está ligado å morte de meu pai, em 24 de setembro de 1961, quando eu ainda não completara 25 anos. O padre Enrico vem à câmara ardente, quer tirar uma foto de papai com seus cinco filhos… Mas eu me envergonho e, com a presunção dos jovens, faço com que não consiga. Creio que ele percebeu minha atitude, mesmo não dizendo nada”, narra.
“O segundo ocorreu meros vinte dias depois, quando ele mesmo estava para morrer. Fui visitá-lo poucos dias antes no Hospital Italiano. Ele está dormindo. Não deixo que o acordem. Saio do quarto e fico conversando com um padre que está ali. Pouco depois, outro sacerdote sai e diz que o padre Pozzoli acordou; avisaram-no da minha visita e ele pergunta se ainda estou lá. Mas digo que lhe respondam que já fui embora. Não sei o que me deu, se era timidez, incapacidade ou dor, a dor pela morte de meu pai que se juntava a essa nova ocasião de luto ou o quê”, diz.
O remorso persiste. “Muitas vezes senti profunda dor e pesar por essa mentira. Como gostaria de poder refazer aquela cena…”, admite.
Seu primeiro emprego foi como faxineiro
Foi com desapontamento que a mãe de Jorge Bergoglio recebeu a notícia de que ele queria se tornar padre. Isso ocorreu no fim de 1955, quando ele concluiu o curso técnico em química.
“O momento de decidir veio junto com o verão, e eu não sabia muito bem como abordar a questão com meus pais. Principalmente com minha mãe, que tinha certeza de que eu iria à universidade e me tornaria médico”, conta ele.
A vontade de se tornar médico havia sido expressa por ele quando adolescente. Na infância, sonhava em se tornar açougueiro – era fascinado pelo trabalho de um funcionário do açougue que frequentava com a avó.
A essa altura, portanto, a mãe entendia que o curso técnico em química era uma espécie de preparativo para a medicina. Certo dia, ela subiu ao sótão onde ele havia montado uma improvisada sala de estudos, “longe do caos do quarto que dividia com meus irmãos”. “Foi guiada por uma intuição, curiosa, com a suspeita de alguma coisa que não conseguia compreender completamente, que lhe escapava e que talvez aquele sótão pudesse nomear. Encontrou um cômodo cheio de livros, e muitos deles não eram o que esperava: textos de teologia, principalmente, alguns em latim”.
Quando o garoto chegou em casa, ela estava esperando. “Você não dizia que queria ser médico?”, indagou a ele. “Respondi que estava pensando também em outra coisa. Que ainda considerava ser médico, mas de almas. Essa resposta tampouco a deixou satisfeita.”
A mãe sugeriu que ele cursasse medicina e depois decidisse se queria mesmo ingressar no seminário. Ele não aceitou. Sua mãe não mudou de ideia, “a ponto de não me acompanhar ao seminário diocesano, nem de estar presente no dia da minha investidura de seminarista”, recorda.
Alguns anos antes, seu primeiro emprego não tinha nada a ver nem com medicina nem com religião. Nas férias de verão de quando ele tinha 14 anos, seu pai o chamou designando-o para um trabalho em uma fábrica de meias de um “judeu grego que se chamava Mose Nahmias, um bom homem que mais tarde compareceria à minha investidura de seminarista”. “Trabalhei durante as férias nessa fábrica, por três anos, fazendo faxina: com um grupo de mulheres e de rapazes limpava o chão e os banheiros […]”, conta.
Mais tarde, quando já cursava a escola técnica, conseguiu um trabalho em um laboratório especializado em indústria alimentícia. “Fazíamos análises bromatológicas para determinar o valor nutricional dos alimentos, exames organolépticos; uma vez tive de fazer uma análise de chocolates e, entre um experimento e outro, confesso que comi muitos pedaços.”
A médica bioquímica que o chefiava teve um papel importante em sua formação. “Essa mulher magnífica foi além: me ensinou a pensar. A pensar sobre política, a bem dizer”, revela o papa. Chamava-se Esther Ballestrino de Careaga e era ativista de esquerda, marxista. “Ela me recomendou livros, me incentivava a ampliar meu conhecimento com outras leituras”, diz.
Por influência da médica, Bergoglio passou a frequentar um comitê socialista e ler periódicos de esquerda, como a revista La Vanguardia e o jornal Nuestra Palabra. “Não concordava com tudo mas conversava com ela e me punha a pensar”, comenta.
Jamais imaginava que seria eleito papa
Mas sem dúvida as páginas mais saborosas do livro são aquelas em que o papa relata os dias de sua eleição para suceder Bento 16 (1927-2022), o papa que havia renunciado ao comando do Vaticano em 2013.
Ele conta que chegou a Roma para o conclave acompanhando as notícias que traziam como papáveis nomes como o do cardeal arcebispo de São Paulo, Odilo Scherer, e o de Milão, Angelo Scola. Ninguém mencionava o cardeal Jorge Bergoglio como favorito.
No domingo que antecedeu o conclave, em 10 de março daquele ano, descumpriu a tradição e não celebrou na igreja que lhe cabia em Roma – por regra, cada cardeal “tem a sua”. “[…] Me dei conta de que não me agradava muito [a ideia], então celebrei, de manhã cedo, na capela da Casa do Clero Paulo 6º, onde estava hospedado”, conta. Talvez tenha sido aí sua primeira quebra de protocolo no pontificado que se seguiria.
Na segunda-feira, sua fala improvisada na reunião de cardeais chamou a atenção. Ele falava que a Igreja precisava olhar para as periferias e este seria o desafio do próximo papa.
Francisco conta que deixou em Buenos Aires até o livro que estava lendo. Comprou passagem para retornar no sábado, dia 23, porque imaginava que celebraria a missa de Domingo de Ramos – até a homilia tinha deixado pronta.
Na entrada do conclave, na terça-feira, dia 12, notou já que havia um clima diferente ao seu redor. Religiosos faziam comentários citando seu nome. Nas votações, ele diz que se comportou como havia feito nas eleições anteriores, que haviam feito o cardeal alemão Joseph Ratzinger se tornar Bento 16: em vez de anotar os resultados na folha que cada religioso recebe para acompanhar a apuração, preferia rezar o terço. Ele conta que acha esse processo entediante. “O escrutínio é uma coisa um pouco chata de acompanhar; parece um canto gregoriano, só que com menos harmonia”, compara.
De qualquer forma, ele reconhece que a cada rodada ouvia mais e mais a repetição de seu sobrenome. E quem o avisou, com “um leve tapa no ombro”, que sua hora parecia estar chegando, foi o seu amigo brasileiro que se sentava ao lado, o cardeal Claudio Hummes (1934-2022).
O nome Francisco foi culpa do brasileiro, aliás. Quando Bergoglio foi eleito, este recomendou a ele que não se esquecesse “dos pobres”. Isto fez com que o argentino se lembrasse da história de São Francisco de Assis (1181-1226).
As quebras de protocolo se tornaram praxe já no momento da investidura. O novo papa negou-se a usar um novo anel–”estava com o anel da ordenação episcopal no bolso e o pus no dedo -, a empunhar uma cruz de ouro– “tenho essa de alpaca” – e a usar os simbólicos sapatos vermelhos – “os meus são ortopédicos”, “meus pés são um pouco chatos”.
Ele diz que nada disso foi premeditado, “era simplesmente o que eu sentia, com espontaneidade”. “Dois dias depois me disseram que precisaria trocar de calça, usar uma branca. Sorri. Expliquei: não gosto de me fantasiar de sorveteiro. E fiquei com a minha”, comenta.
Francisco conta que não imaginava ter um pontificado longo. “Eu tinha a sensação de que ele seria breve: pensava em três ou quatro anos, não mais que isso”, diz. “Era um sentimento indistinto, mas bastante forte. […] Não acreditava que escreveria quatro encíclicas nem tantas cartas, documentos e exortações apostólicas, tampouco que faria todas aquelas viagens para mais de sessenta países. A primeira, ao Brasil, já havia sido maravilhosa. No entanto, realizei isso tudo e sobrevivi.”
Em março, vai fazer 12 anos que Francisco, o argentino Jorge Mario Bergoglio, comanda a poderosa e tradicional Igreja Católica Apostólica Romana.
Este texto foi publicado originalmente aqui.