O que ocorreria com Trump se pusesse preço por imigrantes? – 02/02/2025 – O fio de Ariadne


Minha avozinha veio da República Dominicana grávida, sem marido nem documento. Fui criado por ela. Nasci em Corona, no Queens, e sou pedreiro. É o que digo: ilegais ou não, tem bons e maus, e sou republicano porque não gosto de baderna. Se vissem o que o meu bairro se tornou tem cinco, sete anos, sentiriam tristeza. Só drogados nos parques. Foi por isso que me juntei ao ataque do Capitólio. O instinto da ordem me guiou.

Duas semanas depois da posse de Donald Trump na presidência dos EUA, grande parte da população, inclusive minha avozinha, que não tem ideia de política e só fala espanhol, se irritou com as deportações dos “bad hombres” que chegaram a mais de dez milhões de pessoas. Isso foi porque Trump não cumpriu a promessa de remuneração pelo trabalho. Qualificou de “exemplar” o que consistia em livrar-se de quem entrou ilegalmente no país.

Foi pela TV o comunicado do presidente para os quase 1.600 que obtiveram seu perdão ao atacar o Congresso dia 6 de janeiro de 2021. Eu estava entre eles. Em retribuição à liberdade dos patriotas, o líder falou em uma troca justa. “Um favor remunerado”, explicou em coletiva de imprensa. Pagaria com sua criptomoeda se fizéssemos a faxina.

Após uma pausa estudada —ele é bom nisso—, confessou não ler ficção, e vi na cara dos jornalistas, para onde é que ele ia agora, dando-se ares de intelectual dizendo o contrário. Trump contou que Kim Jong-un, ditador da Coreia do Norte, deu-lhe um livro. Seu colega coreano era fã velado da nossa cultura norte-americana, e com mais alegria declarou que terminara o tomo.

“‘Meridiano de Sangue’ é algo que todos —TODOS— deveriam ler”, falou ele. Qualificou o romance de Cormac McCarthy de “o maior da história da humanidade”, por contar em detalhes como se faz uma limpeza étnica. Seria leitura obrigatória nas escolas e insinuou sanções à Suécia caso não dessem a McCarthy um prêmio Nobel póstumo. Daí eu fui atrás do tal livro.

Foi nas páginas de McCarthy, ambientadas na fronteira americana com o México, que Trump teve a ideia de que nós, os depredadores do Congresso, caçássemos os indocumentados. Para quem não leu, o livro sangrento de 1985 segue a gangue Glanton que, em meados do século 19, por recompensa, não só matava indígenas, mas colecionava seus couros cabeludos.

Não gosto de confusão, já disse, mas fui perdoado após a posse presidencial, então achei que ao menos lhe devia um favor e escondi minha avó. Só aqui em Nova York, meio milhão de ilegais sumiu em questão de horas.

Dez dias depois, em nova conferência, Trump declarou que não faria pactos com anarquistas e não pagaria por uma obrigação patriótica. “Onde estão as cabeças?” Foi a gota d’água. Entendi seu desprezo pela lei e a democracia. O que é isso de arrancar o couro cabeludo das pessoas? Minha avozinha! Voltamos ao Capitólio, estilhaçando janelas e invadindo o prédio com bombas. Usamos chapéus de coiote e membros da Ku Klux Klan rondaram a Casa Branca com tochas.

“Cadê nossa grana?” Mais do que uma guerra, os invasores chamaram aquilo de revolução —eu não, que sou pacifista—, e o presidente correu para o seu bunker. De lá, escapou por um túnel cinematográfico, como fez “El Chapo”, ex-líder do cartel de Sinaloa. Trump fugiu em um trem-bala subterrâneo para Marina Farley, em Atlantic City, onde mantinha seu iate.

Vi na TV meses antes que comprara de volta o megaiate, o Trump Princess. Nosso líder lembrou-se saudoso de quando o obteve pela primeira vez em 1987, o Benetti de 86 metros, e o renomeou em letras enormes. Deixou-o em exibição no porto para inflar sua marca.

Trump Princess era como uma melodia marítima, Trump disse. Não resistiu à sereia que cantava seu nome, mesmo cheirando a diesel. Ao iate, adicionou paredes inteiras de mármore rosado. Foram tantas colunas douradas e espelhos nos mais de cem cômodos da embarcação que o iate ficou parecendo um caleidoscópio infernal, uma boate dos anos 1980.

Ao avistar nosso grupo correndo pelo ancoradouro, Trump gritou que aí vinham os “anarquistas, comunistas, avançando com a mesma violência do Encouraçado Potemkin!”. Tentaram zarpar, mas o mármore, colunas e outros delírios deixou o iate pesado demais. Pedreiros incompetentes.

Quando invadimos o barco e rendemos a guarda, ele notou que sua princesa afundava. Foi detido por Stewart Rhodes, o líder do grupo de extrema-direita “Oath Keepers”, condenado a 18 anos de prisão pelo mesmo ataque ao congresso em 2021. Eu passei três anos preso. Preso e odiado.

Rhodes puxou Trump pela gravata vermelha e indicou o bote salva-vidas: “Vai dar a volta ao mundo para explicar às autoridades o que nos incitou a fazer. E a primeira parada é com a presidenta mexicana”, declarou o líder de extrema direita.

“Mas eu cumpri minha promessa, perdoei vocês!”, protestou Trump. “E não sei nadar.” A voz mal saiu.

Daí eu falei: “O senhor não tem escrúpulos. Não vamos fazer a tal limpeza étnica coisa nenhuma, menos ainda de graça. E seu perdão foi só para reescrever a história, as eleições não foram roubadas. Já para o botinho. E saiba que os ilegais estão escondidos”.

“Então se ninguém morreu, estamos quites”, falou Trump, limpando o suor da testa.

“Quites nada. O senhor está demitido!”, falei bem alto, e até me senti dentro da televisão.

Foi quando um membro da Ku Klux Klan decidiu ir junto. “Pertenci à Heroica Marinha e me comprometo a entregá-lo às autoridades mexicanas”, ele disse, com os olhinhos inquietos atrás da máscara branca, pulando no barquinho. Daí forçamos Trump, com um tridente.

O cabeça de cone deu dois tapinhas no bote, sugerindo que se sentasse ao seu lado. Um outro fez a gentileza de atirar a eles uma garrafinha de água e um protetor solar. E lá se foram, Trump e seu Caronte, com uma tochinha na mão. Deu na TV que foram avistados passando pela Flórida seguidos por um cardume de tubarões. “Fake news“, comentou minha avó. Ela tem razão. Como provar notícia sem imagem nenhuma?

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